CORINGA
Os fatos aqui narrados tiveram seu início em fins de 1939.
Comemoravam os médicos sua formatura e os componentes da turma já sentiam saudades antes mesmo da separação. Fizeram então um pacto: o de se reunirem anualmente para um jantar.
Até aí, nenhuma novidade, mas algumas condições foram estabelecidas:
1) Aqueles que, ao longo do tempo, fossem morrendo, teriam seus lugares preservados à mesa, como se ali estivessem e seus nomes seriam proferidos pelos sobreviventes.
2) As reuniões deveriam continuar ao longo dos anos enquanto restasse alguém vivo.
Assim foi cumprido fielmente.
Após 10 anos, dois colegas tinham cometido suicídio, um morrera em acidente de trânsito e um por enfarte do miocárdio.
Os ausentes eram homenageados com as cadeiras vazias, os nomes pronunciados com respeito e saudade por todos os presentes.
Aos 20 anos, mais sete colegas haviam morrido. Aos 30 anos, as baixas foram de doze; aos 40 anos, o total de mortos chegou quase à metade da turma inicial.
As reuniões se tornaram penosas, melancólicas para os sobreviventes; havia enfartados, cancerosos, seqüelas de AVC, esclerosados e muitos deprimidos.
Aos 50 anos de formatura, restaram 16 médicos; aos 55 eram 9; aos 60, apenas 2.
Chegou a véspera da reunião anual, seria a 61ª.
Um dos sobreviventes, cardíaco há vários anos, telefonara para o colega de turma, seu médico cardiologista:
_Não estou me sentindo bem, sabe, é aquela dor no peito, já coloquei Adalat debaixo da língua e não tive alívio. Desculpa te incomodar, mas poderias me dar alguma ajuda?
Neste momento, a ligação foi cortada e, por mais que Carlos tentasse, não foi restabelecida. Sobressaltou-se, vestiu-se rapidamente, chamou um taxi e partiu para a casa de André, que distava alguns quilômetros da sua.
No caminho, sua mente funcionava de forma febril, vertiginosa, em evocações caleidoscópicas. Via a cada um de seus colegas de turma, evocava detalhes, as piadas, os apelidos, farras, vitórias e decepções.
Chegou finalmente ao seu destino e ficou paralisado: o corpo quase sem vida de André era conduzido em maca para uma ambulância. Nem saiu do carro, mandou seguir para o hospital.
Passou a noite em agonia lenta, mas inexorável. André faleceu às primeiras horas de um novo dia, o dia do jantar de formatura. Carlos Eduardo sentiu o corpo frágil, a cabeça girar, as idéias em desagregação. Nem sabe como voltou para sua casa.
Era madrugada, a mais vazia, a mais longa de sua vida.
Quis chorar, não conseguiu; dormir, nem pensar, iria até o fim.
Horas depois, no restaurante de costume, os garçons viram um homem trôpego, roupas em desalinho, mãos trêmulas empunhando um papel.
Começou a balbuciar os nomes daquela turma de médicos de 61 anos passados.
As lágrimas caíam, molhavam o papel, a voz fraquejou, a cabeça tombou, o corpo também.
Ele sentiu um alívio enorme, pois o reencontro estava tão próximo...
Final do mês de dezembro do ano 2000...
Final do século...
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